10 agosto 2013

Fé Cega, Faca Amolada.

     Vivemos democracia; estamos em um país livre. Um país laico, diriam alguns. Mas, por que esse país não para pra discutir, de uma maneira mais ampla, temas de caráter urgente como o aborto, a relação homossexual, a tributação sobre as igrejas, e o fim do preconceito religioso? Ouso dizer que vivemos uma neodemocracia, que seria, segundo Vladimir Safatle, uma democracia estática, parada, que não busca, como a clássica, o seu próprio aperfeiçoamento.

     Uma democracia respaldada pelo seu povo. Um povo inerte, intelectualmente falando, que se contenta com opiniões formadas, surradas e antigas. Não se aplica à eles o pensamento de David Hume, de que tudo é relativo e que cada caso deve ser analisado, estudado, e diferenciado dos seus demais como um caso único, ou, também, o pensamento de que tendemos a evoluir.

     Pra que possamos, enfim, chegar a essa evolução em questão é preciso ter crivo pra poder ler as situações de forma racional. Precisamos analisar cada uma das questões do mundo muito além do véu dos nossos amores, paixões, convicções e instintos; é preciso analisar as situações fora da caixa das nossas grosserias. É a razão, segundo Aristóteles, que nos difere dos animais.

Pastor Feliciano

     Hoje vejo retrocesso e progresso caminhando juntos, sem que saiamos dos mesmos lugares. Vejo Franciscos e Felicianos, e vejo mais: vejo uma guerra entre ideais renascentistas e medievais em pleno novo milênio. Hoje, penso que não podemos nos mergulhar em uma nova Idade Média; tampouco fazer da sociedade atual uma representação de Sodoma e Gomorra.

     Não podemos nos deixar perseguir os homossexuais, como há muito, ou retroceder quanto à outras questões tão muitas vezes defendias pelas igrejas. Não podemos voltar à obscuridade em que a humanidade foi confinada por quase mil anos; não podemos, de forma alguma, nos conformar e ajoelhar perante a ignorância. A busca pelo conhecimento, o exercício das artes, a sabedoria, em si, é o que aproxima os homens da perfeição e, consequentemente, de Deus.

     Feliciano é o homem que marchas de milhões de pessoas não conseguiram derrubar; pois que ele é respaldado por tantos outros milhões. E isso me assusta e me traz tristeza, me faz realmente pensar no rumo que estamos tomando. Não se pode defender um homem com posições tão absurdas, sem que o povo que o defenda seja absurdo também; o que nos leva ao que todos sabemos: isso é, e sempre seria perfeitamente comum em um país de absurdos.

     As pessoas hoje tem o mínimo de percepção para quererem saber para onde está indo dinheiro pago em impostos - o povo, às ruas, prova isso -, mas se mostram totalmente ignorantes e entorpecidos quanto ao saber dos caminhos traçados por aquele que dão de dízimo. Será que não se importam com a lista da Forbes, que mostra muitos dos nossos ilustres pastores como bilionários, ou ainda com o escândalo de muitos bilhões no banco do Vaticano?

Cegueira; Cego

    Jesus expulsou os vendilhões, limpou o templo daqueles que mercantilizavam a fé e, no entanto, o que são algumas muitas de suas igrejas? Deus é misericordioso, acolhedor, que abraça a todos e que perdoa, que não discrimina, não segrega, e no entanto, o que fazem inúmeros de seus seguidores? O amor ao próximo, que Cristo pregou, parece tão absurdamente perdido entre tantas outras regras, dogmas, ou certezas daqueles que não sabem de nada.

     Não importa se algumas passagens da Bíblia sejam explicitamente contra a camisinha, o aborto, ou a relação homossexual. Não podemos obscurecer nossas visões e nosso pensamento crítico e achar que foi a mão de Deus quem rascunhou aquelas palavras; aquela é a voz Dele, mas escrita por homens, gente como a gente que não conseguiria, além de tudo, ser imparcial.

     Além de tudo, ainda é possível lembrar que o texto original da Bíblia passou por inúmeras traduções, inúmeras reestruturações e já passou, mais do que qualquer obra literária, por edições. Quem duvidaria que o próprio Constantino I não retirou da Bíblia partes que lhe eram desagradáveis ou que tenha acrescentado outras que lhe deleitavam? Ou que outros mais o tenham feito, também? Nem mesmo o livro sagrado deve ser analisado ao pé das suas letras.

     Portanto, não importa muito o que Francisco I tenha falado da acolhida aos gays, ou o que Feliciano, ou Silas Malafaia, digam sobre eles; o importante é o que o povo que os escutam farão com suas palavras. Todo homem tem de saber julgar o que é, ou não, proveitoso dessas falas, o que deve, ou não, nortear suas atitudes e suas escolhas. Não se trata de tudo, ou nada; se trata, basicamente, daquilo que deve, ou não deve, ser aproveitado. Pra uma sociedade inteligente, capaz, sagaz e prática, qualquer líder religioso que fale bobagem é apenas mais um bobo.

     Ter fé é, eu diria, importante. Não só acreditar em Deus, mas acreditar em sorte, acasos, ou em qualquer coisa que seja; acreditar por acreditar, em alguns casos, é saudável. Creio que nenhum homem completamente lógico, matemático, teria a profundidade e a sensibilidade que é tão típica de nós, os sapiens. Ter fé é bonito, mas muito além disso também: acrescenta ao espírito a paz que buscamos, traz esperança e vigor, e ajuda a alcançar a desejada felicidade.

Papa Francisco

     Contudo, como tudo o que há, em excesso, é perigosa. A virtude, segundo Aristóteles, é um perfeito balanço entre os dois excessos (a falta, e a demasia), é o justo meio. A fé cega, fervorosa, sem o mínimo de um pensamento crítico e racional de discernimento quanto o mundo e as mudanças pelas quais ele passa – e tem de passar - é uma loucura que Deus nunca nos imporia.

     Não somos somente fé. Somos mais. Somos um conjunto de fatores, uma teia de ocasiões. Em outras palavras, podemos ser sim sermos religiosos convictos, como foi Galileu, e realizar progressos à luz da ciência, sem que sejamos mortos ou torturados pelos loucos da Inquisição, aquela passada, ou daquela que ainda perdura disfarçada no século que deveria ser moderno.

     É isso que acho hoje, sem ter o compromisso abrutalhado de isso ser, também, o que acharei amanhã, ou depois. Posso, e devo, mudar inúmeras vezes, de inúmeras formas se isso, for, obviamente, o melhor. Não devo me curvar as estruturas engessadas da sociedade atual, tampouco seguir as milhares de normas ditadas aos sete ventos. Tenho de me aperfeiçoar, se eu quiser falar com Deus, buscando chegar ao inatingível, buscando caminhos diferentes.

     A fé é irracional, e a razão não tem fé. Mas, ambas podem caminhas pelo mesmo caminho na cabeça de um homem, desde que ele possua e use da sabedoria necessária, desde que ele saiba que o maior, e mais completo objetivo de qualquer ser na terra é buscar a felicidade – e, em um contexto político, buscar a felicidade da maior parte da sociedade em que vive. O resto dessa equação são os meios, meios importantes, mas, cuja única regra perpétua deve ser não interferir na felicidade alheia. Nascemos todos bichos; alguns de nós tornam-se humanos.

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